Historicamente, os terrenos em topo de morro, as regiões mais altas do relevo, costumavam ser as escolhidas para a ocupação, sobretudo na Europa medieval, em virtude da melhor visibilidade e da melhor possibilidade defesa, uma vez que esses locais viviam em cenário de guerra constante. Assim, construíam-se castelos e fortalezas que, em seus arredores, aos poucos, fizeram florescer as cidades modernas, as quais permanecem estáveis até os dias atuais. A mesma lógica acabou por se aplicar com a chegada dos portugueses em território brasileiro.
A evolução bélica acabou por deixar menos relevante a importância das acrópoles, dos terrenos acidentados e das grandes muralhas, bem como a revolução industrial e a expansão da indústria trouxeram novas necessidades e a massificação das cidades, o que influenciou o urbanismo, cujo modelo ideal de cidade passou a ter espaços amplos e planos. Os terrenos acidentados passaram, então, a ser vistos de forma negativa e a utilização dos terrenos em topo de morro passou a ser feita mormente pelas classes mais carentes e sem qualquer tipo de infraestrutura ou técnica adequada para o terreno, normalmente com ocupações clandestinas.
Essa precariedade das ocupações acarretou graves deslizamentos de terra e a morte de centenas de pessoas ao longo do século XX, o que foi suficiente para chamar a atenção dos legisladores de plantão, intervencionistas, que procuraram coibir a ocupação com leis, sobretudo a partir do Código Florestal de 1965, que estabeleceu o “topo de morro” como área de preservação permanente, sem, no entanto, definir “morro” ou “topo”. E a indefinição dos termos acarretou uma miríade de panaceias infralegais, tais como a resolução 303, de 2002, do Conama.
O novo Código Florestal de 2012 procurou diminuir a complexidade da definição desse tipo de área de preservação permanente, estabelecendo critérios objetivos, inclusive em relação à definição de morro (qual altura) e como calcular o seu topo. Por exemplo: enquanto a resolução do Conama definia a altura mínima do morro a partir de 50 metros, o novo Código Florestal definiu-a em 100 metros. Lei nova, hierarquicamente superior, naturalmente revoga as disposições mais antigas. É assim que funciona no sistema jurídico. Mas não é assim que tem acontecido em Florianópolis quando o assunto são os terrenos em topo de morro.
A questão dos terrenos em topo de morro em Floripa
A Floram e o Ipuf continuam definindo as áreas de Florianópolis mais elevadas, tais como o Morro da Cruz, que atinge diversos bairros da cidade (Trindade, Agronômica, Centro, Carvoeira etc.), como “topo de morro”, área de preservação permanente, que, por consequência, não poderia ser edificada. Ou seja, todas essas construções que aí estão, pela lei, são irregulares e deveriam ser destruídas.
Vive-se uma situação bastante curiosa no centro de Florianópolis, em relação a pelo menos 3.624 terrenos (e muitos outros que não estão sequer cadastrados na Prefeitura): há construções atingidas pela definição de “topo de morro” que possuem alvará de construção e alvará de habite-se; algumas que possuem apenas o de construção, mas tiveram negado o de habite-se; e existem aquelas outras, a grande maioria, que não possuem nenhum dos dois alvarás.
Quem ganha com essa delimitação da área de preservação permanente nos terrenos em topo de morro? Ninguém. Todo mundo perde: os moradores, que poderiam ter suas casas regularizadas; a Prefeitura, que teria uma arrecadação tributária maior; as pessoas que não encontraram um espaço no centro da cidade, próximo ao seu trabalho e ao comércio, e que precisam morar distante; e todos os outros florianopolitanos que perdem com o congestionamento de todos aqueles que precisam morar mais distante do centro.
E a segurança? Quem mora em morro não corre o risco de sofrer com deslizamentos? Sim e não. Simplesmente traçar uma linha pelo terreno, com base em uma medida arbitrária, não significa dar segurança às pessoas. A verdade é que proibições genéricas não asseguram preservação ou segurança, apenas abrem caminho para soluções informais e espontâneas, em regra problemáticas, exatamente como se vê hoje no Morro da Cruz.
Possíveis soluções para a questão dos terrenos em topo de morro
Para dar segurança às pessoas, a preocupação do ente ambiental de Florianópolis deveria ser elaborar “cartas geotécnicas”, com base nas características geométricas, geológicas e fisiográficas dos terrenos em topo de morro e, a partir disso, definir quais são efetivamente perigosas à ocupação, bem como quais partes do morro são essenciais para a preservação. Assim, concentrariam-se os esforços na proteção destas áreas, de forma fundamentada, e permitiria-se o crescimento da cidade de forma ordenada e segura no restante do espaço.
Se o seu terreno está numa dessas áreas definidas como “topo de morro”, fique atento: enquanto a Floram continuar a aplicar esses critérios arbitrários, sem fundamento em lei, a única solução possível para ficar “legal” é enfrentar o aparato estatal com processos administrativos e judiciais, caso a caso, com o apoio de um advogado.