Publicado em 4 de Julho de 2018
Embora passados trinta anos da promulgação da Constituição Federal, carta que pretendeu garantir um mínimo de certeza para o sistema tributário, é ainda difícil encontrar um aspecto positivo na aplicação desta legislação, infelizmente. Ao contrário, nota-se que a voracidade dos fiscos, ideologias ultrapassadas, o despreparo moral e intelectual dos legisladores, uma sociedade indiferente e um Poder Judiciário não tão bem preparado para esta temática perpetuam o mais odioso do mundo jurídico: a insegurança.
A vastidão dos dispositivos legais que tentam, de algum modo, antecipar todos os movimentos dos sujeitos passivos e a complexidade que representa recolher tributos no Brasil (de acordo com levantamento do Banco Mundial[1], gasta-se 1.958 horas para se quitar todas as obrigações tributárias no Brasil, enquanto o segundo pior do mundo, a Bolívia, precisa de “apenas” 1.025 horas[2]) fazem qualquer cidadão comum se perguntar qual é a razão para não mudar os rumos da administração tributária, reformar o sistema.
E como se justifica essa complexidade toda?
Imagine-se 5.600 municípios cada qual com suas próprias regras sobre os seus tributos e considere, apenas para ilustrar, que alguns mais “burocráticos” exigem que para uma empresa se cadastrar em seu sistema para pagar tributos, ela precisa mandar cópia do seu contrato de aluguel (ou matrícula do imóvel) referente à sua sede, o seu contrato social, foto da fachada do estabelecimento (ainda que seja só uma porta), declaração na qual o sócio-administrador “jura” que a sede está mesmo sediada naquele local que consta no contrato social e mais alguns outros tantos formulários, tudo, claro, pelo correio (tente se cadastrar no Município de São Paulo, tendo sua sede em outro município, e este será o caminho), e você poderá ter um vislumbre da criatividade para criar obstáculos e burocracias dos senhores vereadores e prefeitos. Sim, cada Município ainda pode estabelecer suas alíquotas para cada serviço prestado dentro dos seus limites e uma empresa que preste serviços para clientes localizados em mais de um Município pode se ver obrigada a recolher em cada um dos entes federados, ainda que sua sede seja num terceiro município, e ainda que a lei federal diga o contrário.
Depois, ainda se tem 26 estados e mais o Distrito Federal (ente que às vezes se comporta como Município, às vezes como Estado e às vezes como Território Federal) e suas regras próprias para recolhimento do ICMS, regras tão confusas e variadas que têm incontáveis maneiras de serem cumpridas, de forma que é impossível a um Contador médio ser capaz de aplicar corretamente todas as legislações tributárias estaduais (e o que se dirá sobre as quase 6 mil municipais!?). De novo, apenas para se ter uma faísca do cenário caótico, grandes empresas, que têm lojas em cada um dos estados da federação, ficam, muitas vezes, impossibilitadas de “trocar produtos” adquiridos por seus clientes, digamos, do Rio de Janeiro quando estiverem passando, por exemplo, por Santa Catarina, não por má-vontade, mas porque as regras tributárias dos estados não admitem que o ICMS recolhido em um estado seja compensado com o do outro, o que implicaria recolhimento duplo de tributo e acabaria com qualquer lucro do negócio, inviabilizando-o.
Ainda temos a complexidade do sistema federal, obviamente. Só para ficar com um dos tributos de responsabilidade da União, o IPI, tem-se a “Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados” (a querida “TIPI”), que sarcasticamente traz em seu preâmbulo ter sido “baseada no sistema harmonizado de designação e de codificação de mercadorias”, e que, em junho de 2018, contava com 442 páginas[3]. Destaca-se alguns trechos para ilustrar ao leitor o nível de “segurança jurídica” que se tem a partir dela: “qualquer referência a um gênero particular ou a uma espécie particular de animal aplica-se também, salvo disposições em contrário, aos animais jovens desse gênero ou dessa espécie”; ou, então: “ressalvadas as disposições em contrário, qualquer menção na Nomenclatura a produtos ‘secos ou dessecados’ compreende também os produtos desidratados, evaporados ou liofilizados”; isto é: “pode ser que esteja escrito de uma forma, mas a outra forma também se enquadra”. Imagine-se o quadro de absoluta confusão que essa temática leva ao Judicário… E a prepotência do sistema é tamanha que o capítulo 1, que trata de “Animais Vivos”, começa com o seguinte alerta: “o presente Capítulo compreende todos os animais vivos […]”, como se o sistema tributário já conhecesse “todos os animais vivos”, em que pese a ciência mundial ainda não os conhecer.
A voracidade fiscal e a criatividade dos burocratas acarreta uma infinidade de tributos possíveis, os quais, em sua grande maioria, e ao contrário de qualquer senso mínimo de lógica, são arrecadados pela União e vão direto para Brasília/DF, longe dos locais onde são produzidos e recolhidos, longe das cidades onde as pessoas efetivamente moram e os serviços públicos são necessários. Vão para Brasília e um punhado de burocratas e parlamentares escolhe quais serão as localidades mais agraciadas com o dinheiro arrecadado de todo o país. Para acabar de vez com a lógica do sistema, esses burocratas centrados no planalto central têm uma tendência irracional de enviar os recursos produzidos pelos mais produtivos para aqueles mais improdutivos – tira-se de quem produz mais riqueza para enviar para aqueles que pouco produzem, em outras palavras, as localidades que mais se valem de seu trabalho para gerar renda, mais são punidas pelo sistema, que lhes retira o tributo e manda para outro canto do país, para aqueles que pouco fazem para a produzir. Em resumo, o sistema está montado para espoliar o máximo possível de quem produz para dar àqueles que nada ou muito pouco fazem.
E como se o sistema já não fosse suficientemente complexo, ainda temos as famigeradas “desonerações fiscais” (isentar ou reduzir a carga tributária em situações específicas, pelos mais variados e irracionais motivos).
Quiçá o Brasil seja um dos poucos países que cria tributos para, logo na sequência, criar “desonerações ficais” para setores específicos da economia – “os escolhidos”. Pior, faz as tais desonerações, em grande parte, por meio de Medidas Provisórias – MP (segundo a Receita Federal[4], apenas no ano de 2017, na esfera federal, foram 14 diplomas legais para estabelecer desonerações, sendo que, destes, 6 são Medidas Provisórias), instrumento que deveria ser um “arremedo” de lei, em casos de relevância e urgência (art. 62 da Constituição Federal), mas que, hodiernamente, é visto com olhos de normalidade por todos os operadores jurídicos e pela própria sociedade, mesmo quando o ocupante do Planalto lança mão de tal instrumento com a mesma naturalidade com que “troca de roupa”.
As desonerações fiscais, aliás, violam uma das garantias trazidas pela Constituição ora homenageada, prevista no art. 150, II, cujo texto veda que seja instituído tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
Como justificar, portanto, desonerações fiscais que alcancem só parte de um setor da economia ou pessoas específicas quando o texto constitucional prevê, expressamente, que é “vedado o tratamento desigual” para aqueles “iguais”?
Em 2012, a União editou inacreditáveis 35 diplomas legais para desonerar a economia[5]. Existem alguns curiosos, como é o caso da MP 552, convertida na Lei 12.655/12. Entre outros assuntos, em seu artigo 2º, reduziu a zero as alíquotas do PIS/PASEP e da COFINS para o mercado interno de “queijo do reino”.
Os queijos do tipo mozarela, minas, prato, queijo de coalho, ricota, requeijão, queijo provolone, queijo parmesão, queijo fresco não maturado já gozavam da tal isenção (a bem da verdade, redução a zero é isenção, a despeito da discussão doutrinária), mas o queijo do reino ainda não.
A primeira pergunta que vem à cabeça de um tipo igualitário é: por que o queijo gorgonzola não? Ou o brie? Ou o roquefort? Ou o mascarpone? Ou o estepe?
Afinal de contas, foi por conta do gosto pessoal do legislador que foi incluído na desoneração o queijo do reino e não os demais?
Além do critério para lá de questionável para a eleição de alguns em detrimento de outros, a despeito de, normalmente, se pensar que “desoneração” (menos tributos) é bom para todo mundo (para o produtor que vai ter um custo menor; para o consumidor que pagará um preço menor), o fato é que ao se desonerar, os cofres públicos deixam de arrecadar, sem que isso acarrete automaticamente diminuição das contas a pagar.
É como se um profissional liberal resolvesse deixar de cobrar um cliente, num determinado mês, por afeição, ou por ele estar em estado de necessidade maior que os demais. Essa “isenção” dada ao cliente não implicará redução do custo do profissional com aluguel da sala; ou com o salário de funcionários; ou com serviços de internet e telefonia. Os custos permanecerão idênticos, a despeito da “isenção” concedida a um cliente em especial. Logo, necessariamente, ou faltará dinheiro para pagar as contas e o profissional precisará fazer uso de suas reservas, caso existam, ou precisará cobrar mais dos outros clientes.
Nas contas públicas, a lógica é a mesma, com exceção de que já se sabe de antemão que “não existem reservas”. Assim, toda vez que se estabelece uma isenção tributária (ou redução de alíquota) para alguém, inevitavelmente, a conta está sendo transferida de um grupo da sociedade para outro, ou mesmo de uma geração para outra, talvez a mais cruel das transferências.
Neste quadro, naquilo que havia possibilidade de estimar, a Receita Federal concluiu que as desonerações instituídas em 2012 deixariam de levar aos cofres públicos R$ 15,5 bilhões no próprio ano de 2012; R$ 47 bilhões em 2013; R$ 52 bilhões em 2014; R$ 30 bilhões em 2015; e outros R$ 30 bilhões em 2016. Em 2013[6], foram mais 34 diplomas legais com desonerações, com redução de arrecadação estimada para o próprio ano de 2013 em R$ 14,5 bilhões; em 2014, R$ 33 bilhões; em 2015, R$ 24,5 bilhões; e em 2016, R$ 23 bilhões. Em 2014[7], foram 19 os textos legais instituindo desonerações com arrecadação a menor estimada em R$ 2,5 bilhões em 2014; R$ 40 bilhões em 2015; R$ 24 bilhões em 2016; e R$ 26 bilhões em 2017. Em 2015[8], foram mais 9 as normas para desonerar. O impacto na arrecadação ficou a menor em R$ 5,4 bilhões para o próprio ano de 2015; R$ 9 bilhões para 2016; e R$ 11 bilhões para 2017. Em 2016, foram “apenas” 5 textos legais para desonerar, com o impacto estimado negativamente na arrecadação de R$ 600 milhões para 2016 e R$ 1,4 bilhões para 2017.
Embora poucas, em 2016, uma das leis é para lá de curiosa. É a 13.353/16, que trouxe as seguintes benesses, para alguns “amigos do rei”:
Art. 3º. A Lei no 8.894, de 21 de junho de 1994, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 6º-A:
“Art. 6º-A. São isentos do imposto de que trata esta Lei [Imposto sobre Operações de Crédito] a Academia Brasileira de Letras, a Associação Brasileira de Imprensa e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.”
Art. 4º. A Medida Provisória no 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 13-A:
“Art. 13-A. São isentos da contribuição para o PIS/Pasep de que trata o art. 13 desta Medida Provisória a Academia Brasileira de Letras, a Associação Brasileira de Imprensa e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.”
Art. 5º. São concedidas remissões e anistias aos débitos fiscais da Academia Brasileira de Letras, da Associação Brasileira de Imprensa e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro relativos a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil cujos fatos geradores tenham ocorrido até a data de publicação desta Lei, inscritos ou não em dívida ativa, cobrados judicialmente ou não, com exigibilidade suspensa ou não.
A justificativa[9] é ainda mais interessante:
O Projeto de Lei é fundamental para a continuidade dos excelentes serviços prestados pelas associações civis beneficiadas, que receberam o reconhecimento de instituições civis de utilidade pública, como afirma o ilustre autor.
A cultura integra juntamente com a educação um conjunto de aprimoramentos essenciais para o desenvolvimento dos padrões comportamentais de uma sociedade voltada à liberdade, à justiça e à solidariedade.
Sendo assim, a relação custo-benefício é plenamente favorável à sociedade. O Estado dispensa um valor mínimo de receitas públicas, mas os cidadãos recebem como contrapartida incremento culturais infinitamente maiores.
Repare-se na dissociação entre a “dispensa de um valor mínimo [R$ 345 mil] pelo Estado” e o incremento cultural “infinitamente maior pelos cidadãos”, como se Estado e cidadãos fossem entidades separadas e aquele pudesse existir sem espoliar estes e, mais, como se o senhor legislador soubesse escolher por todos os cidadãos brasileiros quais são as entidades que eles preferem que sejam beneficiadas e que vão lhe “garantir mais cultura”.
Por que os senhores parlamentares resolveram dar isenção ao “imposto sobre operações de crédito” e ao “PIS/PASEP” devidos pela Academia Brasileira de Letras, pela Associação Brasileira de Imprensa e pelo Instituto Histórico e o Geográfico Brasileiro e não para todas as outras tão importantes associações que existem no Brasil? Por que aquelas? Perguntou-se para os brasileiros se eles estão dispostos a pagar a conta que seria dessas tais associações?
E se o critério para dar isenção é “o quão boa” é determinada entidade ou pessoa (uma avaliação subjetiva, que depende da avaliação de cada indivíduo), essa lista de pessoas e entidades isentas não deveria ser infinitamente maior? E as que prestam serviços de qualidade ruim? Aumenta-se a carga tributária delas?
A propósito, o Instituto Pró-Livro elaborou pesquisa[10] que, em 2011 (mesmo ano em que o projeto de lei acima verificado foi proposto), apontou que 10% da população ainda era analfabeta, 29% tinha apenas o ensino fundamental I (até o 5º ano) e 22% tinha o fundamental II (até o 9º ano). Em outras palavras, 61% da população brasileira não havia chegado nem no ensino médio. Outro dado interessante verificado é que, segundo a pesquisa, 50% da população não havia lido nem uma parte de um livro em 2011, ao passo que 85% das pessoas declararam gostar muito mais de assistir televisão, em seu tempo livre; 74% das pessoas também declararam que não haviam comprado livro nos 3 meses anteriores à pesquisa.
Diante desse cenário, no qual se verifica que 85% das pessoas prefere assistir televisão a ler um livro, e que aquela também é uma manifestação cultural, considerando que o propósito da lei foi “incrementar a cultura da população” não seria “infinitamente maior o incremento cultural”, para utilizar os termos da justificativa da lei, se o legislador desse benefícios fiscais para programas de televisão, para garantir a sua existência?
Enfim, é este o cenário brasileiro: criam-se infinitas leis para cobrar tributos, das mais variadas espécies e formas, de difícil compreensão; depois, criam-se outras tantas para isentar ou reduzir os tributos criados, mas esta redução será tão-somente para alguns “escolhidos”, com as mais variadas e injustificáveis razões, e a conta dos serviços públicos para pagar continua alta e crescente, em prejuízo do bolso daqueles que não são amigos dos senhores parlamentares, normalmente, os pobres e as pessoas “comuns”, que são espoliadas, em especial, no Brasil, com os tributos sobre os bens de consumo (comida, combustível, passagens, etc.).
Naturalmente, o dinheiro recolhido a menor aos cofres públicos em virtude dessas benesses será pago por todo o resto da população, pelos que gostam ou não do queijo do reino, por aqueles que lêem e pelos que não lêem, indistintamente, pois o custeio do serviço público não foi reduzido com a redução daquelas receitas. A conta a ser paga por toda a sociedade, para cobrir a “renúncia fiscal”, é estimada, para o período de 2012 a 2017, em R$ 390 bilhões (2012 – R$ 15,5 bilhões, 2013 – R$ 61,5 bilhões, 2014 – R$ 87,5 bilhões, 2015 – R$ 100 bilhões, 2016 – R$ 86,5 bilhões e 2017 – R$ 39,1 bilhões).
A essa altura do texto, supõe-se que seja evidente a necessidade da reforma tributária. Mas como a fazer?
Bom, antes de seguir por este caminho, é necessário adicionar outra reflexão.
O objetivo de se recolher tributos é fazer frente aos custos do estado, aos “serviços públicos”.
Assim, é preciso trazer à discussão os dados atinentes ao desempenho orçamentário brasileiro para o mesmo período apontado das desonerações: em 2012, com a “contabilidade criativa”, a União apresentou um “superávit primário” (a economia que se faz em relação a quanto ela arrecada e gasta com o seu custeio ordinário, antes de pagar juros da sua dívida) de R$ 88,5 bilhões; em 2013, também houve saldo positivo, de R$ 91,3 bilhões; entretanto, em 2014, o resultado passou a ser negativo: faltou R$ 32,53 bilhões[11]; em 2015, o déficit foi de inacreditáveis R$ 111,2 bilhões; em 2016, faltou mais R$ 154 bilhões; e em 2017, o prejuízo ficou em R$ 124 bilhões. No total, de 2012 a 2017, faltou para o Governo para pagar “só” suas contas ordinárias (sem considerar os juros da dívida) a quantia de R$ 242 bilhões (considerando os resultados positivos). Se não fossem as desonerações (R$ 390 bilhões), só considerados os valores estimados “oficialmente” pelo próprio Governo, teria havido resultado positivo, naquele período, de R$ 148 bilhões.
A matemática é “dura”. Não permite interpretações ou “jeitinhos”. Os R$ 242 bilhões que faltaram, obviamente, foram transferidos para toda a sociedade que pagará independentemente de ser ou não religioso (as igrejas, todas, no Brasil, têm imunidade tributária – também não pagam tributos) de gostar ou não da Academia Brasileira de Letras, ou da Copa do Mundo. Pior, como esse dinheiro foi somado à dívida pública, é provável que estes valores só venham a ser pagos pelas futuras gerações, que se verão obrigadas a recolher mais tributos (ou ter menos serviços públicos) para arcar com esse déficit, decorrente da irresponsabilidade da geração atual.
E neste cenário de dívida e arrecadação inferior ao que se gasta é possível fazer “reforma tributária”? Parece que não.
Como o estado poderia fazer uma reforma, com o intuito de “reduzir e racionalizar” a carga tributária se, atualmente, com os seus já 32,4%[12] de carga não dá conta de pagar suas contas correntes? Qual dos estados da federação, cujos rombos fiscais são ainda maiores (em proporção) do que o rombo da União, vai se arriscar a alterar a legislação de um dos nossos piores e mais complexos tributos, que é o ICMS, e arriscar-se a ter uma arrecadação ainda menor do que tem hoje?
Eis a razão do título deste artigo: a reforma tributária necessária ao Brasil é “ao avesso”. Antes de reformar a arrecadação, é necessário reduzir drasticamente os gastos, cortar privilégios, repensar as funções do estado, repensar quais atividades efetivamente devem ficar a cargo do Poder Público e repensar o nosso sistema de remuneração e estabilidade dos servidores públicos.
Um estado grande que em tudo intervém e que tudo quer controlar e fiscalizar é ineficiente, caro e só serve para espoliar sua população e tolher sua liberdade, nas palavras brilhantemente escritas por Frédéric Bastiat, em seu clássico “A Lei”, em benefício do grupo (e de seus amigos) que consegue se apoderar da máquina pública – como é o caso das leis criadas para conceder “desonerações fiscais” para estas ou aquelas organizações, pessoas ou empresas, em contrariedade às próprias garantias constitucionais, cuja aplicação deveria ser a razão de existir do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição), o qual, todavia, se queda inerte e subserviente aos demais Poderes da União.
Essa complacência com os gastos, não só do Poder Judiciário, mas de toda a sociedade, trouxe o país à beira do colapso. A situação é tão crítica que o governo federal admite, no orçamento de 2018, aprovado pela lei 13.587/18, que gastará R$ 157 bilhões a mais do que arrecadará. Os R$ 3,57 trilhões previstos para o orçamento deste ano (mais da metade do PIB brasileiro de 2017, que foi de R$ 6,56 trilhões), portanto, não serão suficientes nem para pagar as despesas correntes do Poder Público Federal, quem dirá pagar juros – isto é, a dívida pública não será paga e terminará ainda maior no final deste ano.
E apesar de não haver dinheiro suficiente, ao se analisar de forma perfunctória o orçamento público, que está disponível para qualquer pessoa, pelo Ministério do Planejamento[13], com o filtro “28 – encargos especiais”, encontra-se que o Brasil, um país que não consegue pagar suas próprias contas, tem dotação orçamentária, apenas para citar algumas, de R$ 888 milhões para “manutenção e operação de Partidos Políticos”; R$ 440 mil para a “Comissão Europeia para a Democracia pelo Direito”; R$ 2 milhões para o “Centro de Estudos Monetários Latino-Americano”; R$ 4,3 mil para a “Associação de Supervisores de Seguros Lusófonos”; R$ 250 mil para a “Associação Internacional de Supervisores de Seguros”; R$ 2,5 milhões a “Entidades Nacionais sem Exigência de Programação Específica”; R$ 630 mil a “Organismos Internacionais sem Exigência de Programação Específica”; R$ 50 mil à “Agência Universitária da Francofonia” (região linguística descontinuada que fala Francês!?); R$ 240 mil para a “Associacion de Universidades Grupo Montevidéu”; R$ 36 milhões à “Comissão Preparatória da Organização do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares”; R$ 1,7 bilhões para “financiamento de Campanha eleitoral”; R$ 750 mil para o “Tribunal Criminal Internacional de Ruanda”; R$ 100 mil para a “Comissão Sericícola (bicho-da-seda) Internacional”; R$ 7 milhões para “Integralização de Cotas do Banco Africano de Desenvolvimento”; R$ 9,5 bilhões de “subvenção Econômica à Comercialização de Óleo Diesel no Território Nacional”; e assim a lista prossegue, com pelo menos outras 350 linhas.
Mantendo-se apenas aquelas contribuições a associações e outros “encargos especiais” (que estão totalmente dissociados dos fins esperados do estado), em que pese individualmente elas parecerem ínfimas, alcança-se a cifra de R$ 37 bilhões[14] – a título de comparação, é mais dinheiro do que vai para o Bolsa Família (R$ 29 bilhões), programa que atende 45 milhões de brasileiros.
São valores que variam de centenas a bilhões, para os mais diversos destinos, para associações e organismos internacionais cuja utilidade para o Brasil, em si, é, no mínimo, discutível. E não se está aqui advogando a tese de que os tais organismos e entidades beneficiadas não deveriam ser ajudados ou que o país deve se isolar do cenário mundial. O que se questiona é se, no cenário de insuficiência de recursos para pagar os serviços mais essenciais do próprio país, é prudente manter os gastos com “encargos especiais”, com organismos, algumas vezes, privados e com outros tantos pertencentes aos mais variados países, sejam ricos ou pobres?
Esse desleixo com o destino do dinheiro público também é encontrado nos milhares de Municípios brasileiros, como foi o caso noticiado recentemente, para citar apenas um, sobre o salário-esposa pago em São Paulo[15] (aos servidores públicos que são casados com mulheres que não trabalham); e nos 26 estados brasileiros e Distrito Federal, como se viu também recentemente, para citar apenas um exemplo, com a licitação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina para adquirir “café gourmet”[16].
Não seria mais útil ao resto do mundo, ao invés de enviar somas de dinheiro para associações privadas cujos benefícios para a sociedade mundial são para lá de questionáveis, ou ao invés de desperdiçar com cafés gourmets para repartições públicas, se o Brasil optasse por gastar menos, reduzisse sua carga tributária, ou, então, gastasse no que melhorasse suas condições de produção, para produzir mais produtos a custos menores e possibilitasse a prática de um comércio internacional benéfico a todos os agentes envolvidos, vendendo produtos mais baratos para países mais pobres, por exemplo, garantindo acesso aos bens de consumo a mais pessoas necessitadas? A produção de mais bens de consumo a preços mais baixos parece ter sido a única forma de trazer prosperidade ao mundo, melhor qualidade de vida às pessoas (sejam do país que forem), conforme reiteradamente já foi apontado pela pesquisa científica, mas, por outro lado, não existem evidências de que simplesmente mandar dinheiro para outros países ou associações melhore as condições do país que o recebeu ou do país que o enviou, consoante demonstrou William J. Bernstein, em seu irretocável livro “Uma Breve História da Riqueza”.
Em qualquer cenário, o fato é que enquanto os custos da máquina pública forem tão elevados ao povo, a tão almejada “reforma tributária” estará longe. Primeiro, é necessário adequar a máquina pública, reduzir drasticamente os seus desperdícios, para, então, pavimentar o caminho para a readequação tributária. Somente quando, no “final do dia”, o dinheiro sobrar, é que se poderá repensar o quanto e como se arrecada. A reforma tributária, portanto, precisa ser realizada “ao avesso”.
[1] http://portugues.doingbusiness.org/data/exploretopics/paying-taxes. Acesso em: 30/06/18.
[2] E é possível fazer esse trabalho com muito menos, como provam os dados da Rússia – 168 horas, do Reino Unido – 110 horas, da Austrália – 105 horas e dos invejados Emirados Árabes Unidos, com suas singelas 12 horas
[3] http://idg.receita.fazenda.gov.br/acesso-rapido/legislacao/documentos-e-arquivos/tipi.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[4] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/desoneracoes-instituidas-2017-24-05-18.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[5] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/desoneracoes-instituidas-2012-13-05-16.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[6] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/DesoneraesInstituidas201311_11_2015.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[7] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/DesoneraesInstituidas201411_11_2015.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[8] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/DesoneraesInstituidas201519_04_2017.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[9]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1035747&filename=PRL+1+CFT+%3D%3E+PL+2713/2011. Acesso em: 30/06/18.
[10] http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[11] Ou seja, a União precisou tomar mais dinheiro emprestado não só para “rolar sua dívida” mas também para pagar o seu custeio ordinário. É como se o cidadão tivesse aluguel e funcionário para pagar, o que lhe custa R$ 15 mil no ano, e mais o financiamento de R$ 100 mil de sua casa própria, o que lhe custa entre prestação e juro R$ 20 mil no ano – por outro lado, a sua receita é de apenas R$ 13 mil. Ou seja, com a receita que obtém, não consegue nem pagar os seus gastos de aluguel e funcionário (faltam R$ 2 mil) e o seu financiamento está todo em aberto (R$ 20 mil) ao passo que sua dívida, ao final do ano, saltará de R$ 100 mil para R$ 122 mil (os R$ 100 mil iniciais, mais os R$ 2 mil das despesas ordinárias que faltaram, mais os R$ 20 mil das prestações e juros).
[12]http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2016.pdf. Acesso em: 30/06/18.
[13] https://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/. Acesso em: 30/06/18.
[14] http://beladv.com.br/index.php?q=orcamento2018. Acesso em: 30/06/18.
[15] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/camara-aprova-reajuste-do-salario-esposa-dos-servidores-do-tribunal-de-contas-do-municipio-de-sp.ghtml. Acesso em: 30/06/18.
[16] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/edital-do-tribunal-de-justica-de-sc-preve-gasto-com-cafe-gourmet-de-ate-r-13-milhoes-por-ano.ghtml. Acesso em: 30/06/18.