Diante da simplificação do processo de dispensa de licitação promovida pela Lei nº 13.979/2020, o comprometimento à economicidade da contratação deve ser sopesado ante a suposta eficiência do SRP.
Publicado em 20 de Abril de 2020
Felipe Boselli[1]
Fernanda Senna[2]
Lucas Hellmann[3]
Mais um capítulo das alterações legislativas provocadas pela COVID-19 foi escrito no último dia 15 de abril. Trata-se da Medida Provisória nº 951/2020, que trouxe novidades relacionadas às compras públicas, às certificações digitais e às sanções em matéria de licitações. Neste breve artigo, será tratada a possibilidade de criação de ata de registro de preços por dispensa de licitação.
A referida Medida Provisória trouxe alterações à Lei nº 13.979/2020, principal norma legal responsável por balizar as medidas de enfrentamento à emergência em matéria de contratação pública, que agora incorpora mecanismos relacionados ao Sistema de Registro de Preços (SRP).
É diante desse cenário que a Medida Provisória nº 951/2020 acresceu três novos parágrafos ao artigo 4º da Lei nº 13.979/2020, o qual trata da dispensa de licitação para aquisições ligadas ao contingenciamento da COVID-19.
O recém criado § 4º do mencionado artigo 4º Lei nº 13.979/2020, acrescido pela Medida Provisória nº 951/2020, autoriza que a dispensa de licitação do caput seja utilizada para o Sistema de Registro de Preços, quando há interesse na compra ou aquisição por mais de um órgão ou entidade. Ou seja, o procedimento que originalmente era realizado exclusivamente por meio de licitação na modalidade concorrência ou pregão, agora, em razão do contexto emergencial, poderá ser realizado por meio de dispensa de licitação.
O Sistema de Registro de Preços é um modelo de contratação pública que permite à Administração licitar objetos que não se tenha previamente a exata noção da quantidade necessária. Neste sistema, a Administração repassa ao particular o controle de estoque e possibilita que as compras sejam realizadas conforme a necessidade do órgão, em um modelo de aquisição just in time.
A inovação trazida pela Medida Provisória nº 951/2020 foi a possibilidade de o SRP ser realizado por dispensa de licitação. Presume-se que a motivação insculpida na norma foi de desburocratizar o procedimento de compra para agilizar a aquisição de produtos com demandas repetitivas por vários órgãos da Administração Pública. Essa motivação é justificada à medida que as demandas em relação a COVID-19 crescem exponencialmente. Para conter os efeitos da doença, é necessária uma ação célere do Poder Público.
No entanto, o uso desse regime de contratação, em um cenário de pandemia, deve ser feito com extrema cautela. Isso porque a razão de existir do Sistema de Registro de Preço está ligada ao fato de que a Administração não sabe quanto, nem quando, irá adquirir os produtos ali licitados.
Essa incerteza no momento e na quantidade que será adquirida pela Administração certamente pressionará os preços dos fornecedores para cima, que precificarão o risco da contratação e do controle de estoques em um mercado turbulento como o que vivemos atualmente.
Em razão da insegurança a respeito da data da contratação, é crível que os concorrentes aumentem os valores dos produtos. Essa dinâmica ocorre por motivo lógico, de mercado. Hoje produtos como respiradores, luvas, máscaras, álcool em gel e equipamentos de proteção individual para área de saúde estão extremamente escassos, e, portanto, flutuam em alta de preço vertiginosa, sendo muito difícil que uma empresa tenha condições de dar uma proposta alinhada ao preço vigente e ainda se obrigue manter esse preço no futuro.
A empresa que se compromete, por meio do SRP, em fornecer um produto por determinado valor, terá que quantificar os riscos de que, em alguns meses, o valor agregado ao produto poderá ser muito superior ao da proposta, o que ocasionará prejuízo. Portanto, a Administração Pública corre risco de adquirir produtos mais caros. Algo que se contrapõe ao princípio da economicidade.
Ainda que se possa levantar o argumento de eficiência do regime, uma vez que a Administração pode utilizar a mesma Ata reiterada vezes para a aquisição de produtos ou a contratação de serviços, não é possível desconsiderar que as exigências do procedimento de dispensa de licitação para o enfrentamento da COVID-19 foram extremamente flexibilizadas na Lei nº 13.979/2020.
Neste modelo de contratação direta não são necessários estudos preliminares, a obrigatoriedade da estimativa de preços foi afastada, os requisitos de habilitação foram quase todos dispensados, além da presunção de justificativas técnicas.
Ou seja, as contratações diretas feitas com base na Lei nº 13.979/2020 são muito mais rápidas e simplificadas, podendo ser repetidas sempre que necessárias, de modo que o comprometimento à economicidade da contratação deve ser sopesado diante da suposta eficiência da utilização da Ata de Registro de Preços.
Ademais, a repetição de uma contratação direta é razoavelmente simples, com a possibilidade de reprodução do processo como um todo, apenas com uma nova cotação de mercado.
Ou seja, na contratação por registro de preços o que se possibilita é o afastamento de uma nova cotação de mercado a cada contratação. Em um cenário com oscilações expressivas de preço esse afastamento é muito delicado.
A razão é bastante óbvia. Quando a Administração registrar o preço de um produto por R$ 10,00 três coisas poderão acontecer nos dias seguintes: a) o preço pode se manter na faixa de R$ 10,00; b) o preço de mercado pode cair para R$ 5,00 e a empresa fornecerá a R$ 10,00 com expressivo lucro; ou c) o preço de mercado pode subir para R$ 15,00 e a empresa certamente se negará a fornecer alegando que houve aumento expressivo do preço de mercado e desequilíbrio contratual.
No atual cenário, nos parece que as duas hipóteses em que o preço flutua são mais prováveis que a primeira de estabilização. Nos dois casos a Administração Pública sai perdendo.
Ponto de atenção e de possível vantagem do SRP nestes casos é a exigência de que o registro de preços seja feito por mais de um órgão. De fato, a coordenação de compras centralizadas podem ser um benefício do SRP.
Neste sentido, o artigo 4º, § 6º, promove a redução nos prazos para que os entes e órgão manifestem seu interesse em participar do sistema de registro de preço. Anteriormente, o prazo consistia em oito dias úteis, a contar da data de divulgação da intenção de registro de preço, enquanto a nova legislação alterou o prazo para dois a quatro dias úteis. Trata-se de uma medida para acelerar os procedimentos de contratação em tempos de pandemia, na esteira da inovação trazida pelas novas “contratações de urgência”, as quais tivemos a oportunidade de discutir em artigo dedicado ao tema[4].
Nada obstante o avanço da possibilidade de contratação centralizada, a nosso ver, não haveria óbice na coordenação de uma compra centralizada com a realização de uma dispensa de licitação coordenada por vários entes da Administração Pública, ainda que não se tenha notícias de tal procedimento.
Por derradeiro, merece especial atenção a questão da duração da Ata de Registro de Preço elaborada com base na nova legislação. Isso porque, conforme o art. 4º-H da Lei nº 13.979/2020, os contratos terão prazo de duração de até seis meses (ante o prazo máximo de um ano determinado pelo artigo 15, § 3º, inciso III, da Lei nº 8.666/1993) e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.
Em que pese uma Ata de Registro de Preços não se confundir, em absoluto, com um contrato, nos parece que a Ata oriunda de uma dispensa excepcional que está limitada a seis meses (podendo aqui haver prorrogações) não poderia ser assinada por período superior a seis meses.
Ao fim, conclui-se que o Sistema de Registro de Preço é um procedimento de modo geral eficiente, principalmente porque permite facilitar a contratação fracionada pela Administração e ampliar a participação de outras entidades. No entanto, sua realização por meio da dispensa de licitação, em um cenário de epidemia e de larga flutuação de preços merece maior cuidado, tendo em vista que a dispensa de licitação sem o regime de registro de preços pode demonstrar-se ser uma saída mais eficiente e sobretudo econômica para a aquisição dos produtos e contratação de serviços necessários para o enfrentamento da crise.
[1] Doutor em Direito do Estado. Advogado, professor e Conselheiro da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – CASAN. Diretor de Direito Público da Escola Superior de Advocacia – ESA-OAB/SC e Secretário-Geral do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC.
[2] Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
[3] Graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
[4] BOSELLI, Felipe; HELLMANN, Lucas; DE FRAGAS, Isadora. A Covid-19 e a inovação das contratações de urgência no Brasil. Disponível em http://beladv.com.br/index.php?q=contratacoes-de-urgencia. Acesso em 16 abr. 2020.